segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Eu uso óculos!

"Se eu te disser
Periga você não acreditar em mim
Eu não nasci de óculos
Eu não era assim."

Correto, eu não nasci de óculos. Mas o fato é que eles acompanharam o meu dia-a-dia por metade da minha vida e, pelo visto, não vão me largar tão cedo.

Tentando revistar minhas lembranças do início da adolescência, me recordo  do momento em que desejei usá-los. Me fascinava aquela certa aura de intelectualismo que sempre rondou a pessoa por detrás das lentes. Agora, tentando entender melhor alguns pensamentos e ações, me veio a pergunta: porque isso? Por que os óculos conferem um status diferenciado a quem os usa? Teriam os óculos o poder de deixar a pessoa mais culta, letrada, conferindo-lhe a aura referida? O que existe nos óculos que faz com que indivíduos, mesmo sem nenhum problema na visão, tenham a intenção de utilizá-los, pousando sobre  as suas orelhas e nariz, esse artefato mágico da spiência?

Primeiramente, poderíamos pensar que no surgimento dos óculos (aproximadamente no sec. XIII), as únicas pessoas que tinham capacidade de corrigir problemas de visão eram as das classes mais abastadas. Dessa forma, as lentes estavam relacionadas diretamente ao poder aquisitivo e a capacidade financeira do seu portador.

Atualmente, muito mais do que um objeto para correção de deformidades visuais, as lentes transparentes (vale ressaltar que não estou tecendo comentários a respeito dos óculos de sol) são um acessório de moda, ou, como na maioria dos casos, motivo de escárnio infantil.

Tentando entender melhor a questão, lembrei-me de uma peça de teatro onde um dos atores comentava: "As pessoas não usam óculos porque são intelectuais, elas viram intelectuais pois precisam usar óculos!"

Não seria essa uma boa afirmação para o tema? Ao pousar sobre a face duas lentes revestidas por uma armação, a pessoa já assume: "não sou perfeito, meu aparelho visual não funciona como deveria". Dessa forma, uma postura de submissão em relação as pessoas que tem o globo ocular perfeitamente esférico já é assumida.
Além disso, as lentes funcionam como um anteparo entre as percepções externas e o universo interno, dificultando essa relação exterior/interior. Talvez por esse motivo, o estereótipo do indivíduo introspectivo, envergonhado e com dificuldades de relacionamento, seja sempre acompanhado por um par de lentes.

Entre prós e contras, ainda sou feliz com os meus óculos. Quando quero ver as coisas como elas são, pouso-os sobre o nariz, ou ainda utilizo lentes corretivas que não denunciam a minha deficiência. Mas quando pretendo ver as coisas de uma outra forma, mais difusa e menos "correta", ainda tenho essa possibilidade.
Talvez foi isso que Hebert Viana quis dizer:

"Se eu tô alegre eu ponho os óculos
E vejo tudo bem
Mas se eu tô triste eu tiro os óculos
E não vejo ninguém."

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Sobre o início e o som

"Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons"
(Chico Buarque - Choro Bandido)

Nenhum tema melhor para encetar o primeiro post do que o próprio início. Início do que? De tudo!
A pergunta que norteia as idéias abaixo relacionadas: haveria um início comum a todas as coisas?

Segundo os Hopis (tribo indígena norte-americana, situada na região noroeste do Arizona), as criaturas nasceram do diálogo entre dois deuses: o Deus do Sol "Masau'u", que estende seus poderes sobre o fogo e a morte, e a Deusa da Terra "mulher aranha". Dessa conversa entre um aspecto aspecto masculino (ativo) e um feminino (passivo), nasce o universo.

Na tradição egípcia, o Deus Atum sai das águas abissais e vai a uma colina, onde diz: "eu sou o Deus autogerado" isto é, um Deus que criou a si mesmo. O panteão só se torna completo quando Atum passa a nomear as partes do corpo, de onde as demais figuras divinas emergem. Em Memphis, ainda no Egito, o deus Ptah concebe os poderes do universo em sua mente (cérebro) e os trás a existência por meio da fala (boca). 

Na tradição Hindu o universo surge a partir da manifestação do absoluto (Brahma), que se subdivide em energia pura (princípio ativo, masculino) e espaço puro (princípio passivo, feminino). Do movimento da energia no espaço surge a matéria, que tem como primeira manifestação o som: "ÔM".
Em outro mito Hindu reforça-se a idéia da palavra criadora: no princípio só havia água, a água se aqueceu e nela surgiu um ovo. Após um ano Prajapati emergiu do ovo, e ao fim de outro ano tentou falar. Ela disse: "Bhur", e  essa palavra deu origem a Terra (plano denso). Ao pronunciar "Bhuva" deu origem ao céu (plano intermediário, o céu azul que vemos todos os dias), e ao dizer "Swaha" deu origem ao céu distante (plano mais elevado, o "mundo das idéias")

Na Gênese da tradição judaico-cristã temos: "No princípio era o verbo (...) Todas as coisas foram feitas por meio dele" (João, 1: 1,3). 

Podemos perceber nesses mitos cosmogônicos, que diferentes culturas concebem o universo como criado a partir de uma articulação da consciência, que assume a forma de som (palavra). Em um primeiro momento temos uma intenção criadora, que se materializa através do som, seja na forma de diálogo entre deuses, na forma de som puro (ÔM), ou na forma de nomeação de objetos: "E Deus disse: Faça-se a luz! E a luz foi feita".

Para o historiador romeno Mircea Eliade, os mitos são "modelos para a conduta humana e conferem valor à existência". O que tais mitos estariam nos dizendo? Talvez a criação de todas as coisas não sigam o mesmo "rito processual" da criação do universo?  Não seriam as coisas criadas seguindo esse mesmo padrão: Uma idéia que se adensa como matéria através da palavra, ou seja, do som?

O som é a primeira representação sensível (percebida pelos sentidos) de qualquer idéia. Antes que um objeto tome forma, físicamente falando (seja ele um tênis, um post no blog, ou o próprio universo!), ele já existe sonoramente.

Para os gregos a "Harmonia das Esferas Celestes" seria a base sonora da criação. Sobre esse som que apenas os iniciados teriam a capacidade de ouvir, e que os demais mortais sentiriam como "silêncio", estaria a origem. A "primeira lira que animou todos os sons" seria uma outra metáfora para esse som que precede a criação.
Para os Hindus o Pranava "ÔM" seria a primeira manifestação da força criadora. Em um caminho contrario, tal som levaria a pessoa que o utiliza a um "reencontro" com esse potencial genésico.

Agora, voltando  ao início (não do universo, mas do post mesmo), não teriam todas as coisas uma origem comum? E não seria o som esse código originário?

"Isso foi para você constatar o poder do som. Mais tarde vou-lhe ensinar sons para acalmar os animais e sons para afastá-los; sons para adormecer e sons para despertar; sons para curar e para matar; sons para produzir a concentração mental e outros para despertar energias adormecidas em você. Esta é parte da minha ciência. O verbo é um grande poder que está a nossa disposição. Mesmo as palavras que usamos para falar têm grande força. Tudo o que a nossa civilização construiu e realizou, partiu da palavra, pronunciada ou mentalizada. Antes de construir sua cabana, você disse: "Vou construir uma casa". Foi assim que sua habitação começou a existir." (DeRose, Eu me lembro)

Bom, reflexões suficientes para um início sonoramente conturbado...